REVISTA DIÁLOGOS NUR

Nur, significa luz em árabe. A luz do iluminismo que, antes do europeu, já brilhava sobre as terras da Andaluzia durante o esplendor da civilização islâmica, tema retratado nessa 20ª Mostra Mundo Árabe de Cinema no filme “Os Constructores de Alhambra” e hoje pode ser um norte pra combater o obscurantismo que ameaça o mundo. Nessa edição da Revista Diálogos Nur comentários, histórico, informações e opiniões sobre um tema ainda mais pungente: a destruição da Palestina, mas também a reconstrução da memória e da vida numa resposta poética, apaixonada e poderosa mostrada pelas produções “Tudo o Que Resta de Você”, “Fidai: Verão de 1982” e “A Porta do Sol”, agora que completamos quase dois anos de genocídio, elevaremos o nosso grito mas também a nossa luz.

À MEMÓRIA DA PALESTINA

A produção palestina “Tudo o que Resta de Você” abre a 20ª Mostra Mundo Árabe de Cinema. Dirigido por Cherin Darbis, diretora palestina, e estrelado por Salah Bakri, conta a saga de uma família vítima da Nakba, deslocamento forçado de 750 mil palestinos de seus lares entre 1947-48. Obrigados a deixar sua casa confortável em Jaffa, a família vai viver num campo de refugiados na Cisjordânia, Palestina ocupada. A partir daí vemos como o processo de opressão colonial e tentativa de apagamento da memória e da vida, comum a todos palestinos, se reflete nas três gerações da família. Uma das cenas mais emblemáticas do filme acontece no período da ocupação militar após 1967, quando Israel tomou a Cisjordânia, Gaza e Jerusalém Oriental: o personagem Salim, uma criança durante a Nakba, agora é professor e pai do menino Noor, ele é obrigado a ajoelhar-se diante de um soldado israelense e a dizer frases humilhantes na frente de seu filho. Mais tarde isso gerará tensões na família já que Noor entende o gesto do pai como covardia e se apega ao avô, Sharif e sua ainda vívida vontade de lutar, enquanto Salim insiste que Sharif deixe de lado o passado. As posições se confrontam entre as três gerações e, vale dizer aqui, que o personagem interpretado por Salah Bakri não é um conformista, mas um homem tentando sobreviver, ainda com dignidade, em meio ao processo de degradação imposto ao seu povo. A sequência mostra como a opressão provoca cizânia familiar, dilacera os laços sociais, sem que as próprias vítimas, muitas vezes, se deem conta de quem é a culpa. Passam-se alguns anos e Noor é ferido num protesto durante a primeira Intifada. A família vê-se jogada numa vertiginosa busca por atendimento ao filho, enfrentando da indiferença burocrática às barreiras propositadamente colocadas em seu caminho pelos ocupantes. O enfrentamento cruel já é conhecido desde 1948, mas agora a luta é urgente e vale a sobrevivência física de um jovem palestino. Passado, presente e futuro se encontram feridos no coração da Palestina, neste filme memorável. Sob a direção de Cherin Dabis, diretora de “Amerika” e atriz na série “Mo” (ambas produções retratam a vida cotidiana de palestinos-estaunidenses nos EUA), “Tudo o Que Resta de Você” compõe um antologia da perversidade, que hoje se encontra em seu maior grau no genocídio em Gaza. Porém há sempre uma resposta digna dos atores, cineastas, escritores, e poetas palestinos que transformam cada ato artístico e cultural numa vitória da vida. A presença de Salah Bakri e de seu pai Mohamad Bakri, homens dedicados às artes do cinema e da interpretação há décadas, nesse momento, só reforçam essa bela história de luta e amor. 

Da Palestina ainda serão exibidos “Fidai:  Verão de 1982”, no Cinesesc; “A Porta da Sol”, “Cinco Câmeras Quebradas” e “Obrigado por Sonhar Conosco”, nas sessões no CCBB. Em todos esses filmes é forte a presença dos processos de ocupação e limpeza étnica da Palestina e suas trágicas consequências. Esta é uma marca do cinema palestino. Toda a vida na Cisjordânia, em Jerusalém, Gaza e nos campos de refugiados do Líbano é marcada pela perseguição, pelo aniquilamento físico, social, econômico e cultural de uma nação, nenhuma atividade na Palestina fica fora da repressão e do menosprezo dos colonizadores. Por isso a arte, a poesia, a literatura, o cinema, em sua completude e dignidade são desafiadoras, ao nunca deixarem de retratar essa realidade. A grande arte está em transformar esse drama político em poesia, reafirmando a humanidade palestina ameaçada. Assim fazem também cineastas como Anne Marie Jacir e sua acurada sensibilidade em produções como “O Sal Deste Mar”, Larissa Sansour em sua ficção científica única e original como em “Nation State”, Elia Suleiman e seu humor absurdo de “O Paraíso Deve Ser Aqui” e todos os seus filmes, e tantos outros artistas dentro da Palestina e na diáspora. O movimento cinematográfico nacional palestino, que se reinicia em 1968 (numa retomada tão poderosa que até Jean-Luc Godard dirigiu um filme com a temática da palestina: “Aqui e em Outro Lugar”), depois do período de choque pós-nakba, passam a ter, todas as características de preservação da história e identidade. As produções “Fidai: Verão de 1982” (2023), de Kamal Aljafari e “A Porta do Sol” (2004), Yousry Nasrallah pela experiência de memória, resistência e identidade, dialogam com iluminada ideia da Presença da Ausência, título do livro de Mahmud Darwich o maior dos poetas palestinos. Palestinos empurrados para o exílio continuam presentes em sua terra através da memória, os que permaneceram guardam as lembranças de uma época como se o tempo tivesse parado. “A Porta do Sol”, adaptação do romance homônimo de Elias Khoury e considerada uma obra-prima da literatura árabe moderna, conta a história do amor do combatente palestino Younis e sua mulher Nahila. Nos anos que se seguiram à expulsão dos palestinos de suas terras, ele, refugiado no Líbano, atravessa a fronteira com a Palestina para encontrar clandestinamente a sua amada em uma caverna que denominam A Porta do Sol. Ali dentro, como um pequeno e idealizado pedaço da Palestina liberta, decorado à maneira deles, tudo é possível: festejar, cantar, contar histórias e principalmente amar. Os encontros não duram mais que um dia e uma noite, mas eles frutificam em quatro filhos do casal, para o espanto dos militares israelenses que desconfiam que aqueles filhos são de Younis, mas não conseguem capturá-lo. O lugar em que o casal se encontra é inacessível a eles pois aquela pequena Palestina está no desejo, na memória e na esperança dos palestinos e nunca nas intenções vis do ocupante. Já em “Fidai: Verão de 1982”, que pode ser classificada como experimental ou de intervenção artística – embora essas classificações só situem parcialmente uma obra cinematográfica – o diretor parte de uma premissa factual para buscar e restaurar as memórias saqueadas da história de seu país: no verão de 1982, o exército israelense em sucessivos ataques à Beirute invadiu o Centro de Pesquisa Palestino e pilhou todo o seu arquivo contendo documentos, fotos e imagens históricas da Palestina. “Fidai” mostra esses arquivos sob outro ponto de vista, neles vemos a Palestina da vida cotidiana pré-nakba, os registros da expulsão, as cenas das revoltas e da resistência. Ironicamente o que os ocupantes confiscaram como arquivos de “terroristas”, talvez como “provas” de ações violentas, acaba comprovando quem de fato promoveu a violência e o terror do Rio ao Mar. O próprio ato de destruição e saque em Beirute traz consigo imagens de saque e destruição na Cisjordânia e na Galiléia Palestina, é a agressão duplicada. Mas Kamal Al Jafari ainda ressignifica ou reforça intenções nas imagens com letras de músicas tradicionais, textos do celebrado escritor Ghassan Kanafani e intervenções gráficas nas imagens, como nas sequências em que um casal, falando em hebraico, sentados numa cadeira à beira da praia, tem seus rostos e partes do corpos borrados de vermelho, como se fossem espectros, fantasmas que não pertencem àquele lugar. Já um trecho do livro “Retorno à Haifa”, de Kanafani, é ilustrado por imagens que percorrem ruas de uma cidade cheia de ruínas, não há ninguém na rua, a sensação é de abandono, as legendas nos contam: Ao chegar à entrada de Haifa vindo de carro por Jerusalém Said S. teve a sensação que algo lhe prendia a língua, forçando-o a ficar em silêncio. Por instantes teve a tentação de voltar para trás e sem sequer olhar para ela sabia que começara a chorar em silêncio. Foi então que, de repente, ouviu o som do mar como antigamente. E vemos o mar de Haifa, que permanece na Palestina trazendo memórias, sabores e aromas eternos.

Os filme descritos nesse artigo, parecem seguir, com pequena variação, o roteiro poético que Mahmud Darwich, o maior dos poetas palestinos, construiu em seu livro A Presença da Ausência, onde ele nos diz: não resta mais nada nem há mais amanhã – disseram – , por nos encontrarmos neste estado, destinados por firmes fados, abismo em abismo amarrados. tomamos água de poços vizinhos, emprestamos pão de pedra. vivemos, se vivemos, de broto de passado, plantado em campinas que eram nossas por séculos até há pouco, antes do pão crescer, antes do café esfriar, em uma hora maldita, a História como um ladrão destemido arrombou a porta enquanto o presente fugia pela janela. como uma ou duas chacinas, o nome da nossa terra, nossa terra, mudou de cor. o real virou história e a memória está morta. o mito invade e a invasão se deve à vontade de Deus que prometeu e não renega os prometidos. inventaram história: retornamos. inventaram história: retornamos ao deserto, e nos testaram: por que nascer aqui? dissemos: por que não nascer no Éden?

Nesse diálogo-poema, ao desamparo e à agressão se seguem à melancolia da despossessão que toma conta da nação e sua cultura. E mesmo a memória parece perdida nas palavras de Darwich, mas eis que ele retoma à esperança, recorrendo justamente a memória, concreta, presente:

lembra, pra crescer, de ti antes do pó

lembra, lembra

teus dez dedos, esquece o sapato

lembra teus traços e tua face

esquece a névoa do inverno

lembra com o teu nome, tua mãe

esquece as letras

lembra tua terra, esquece o céu

lembra lembra!

E ao final do poema a Palestina estão de volta as lembranças que embalam a resistência, como em ‘Tudo que Resta de Você”, “A Porta do Sol” e “Fidai: Verão de 1982” que, com delicadeza, desafiam a brutalidade em curso e nos dão um pouco mais de esperança e alento, sem nos tirar a revolta e a vontade de gritar: parem com o genocídio!

A CONSTRUÇÃO DA POESIA EM AL ANDALUZ

O documentário “Os Construtores de Alhambra” é sobre uma obra monumental, uma busca, uma viagem em direção ao passado e ao futuro, que gerou um filme de produção monumental. A equipe da diretora espanhola Isabel Fernández fez uma reconstituição e reencenação histórica, com atores e atrizes, da construção dos castelos do complexo de Alhambra, em Granada, Andaluzia, no século XIV. Desde a criação do roteiro até sua finalização, o projeto levou sete anos para ser concluído e é fruto de uma minuciosa pesquisa histórica da arquitetura, vestuário, literatura e até botânica da época. As referências eram poucas, a história da construção desses castelos nunca havia sido contada no cinema. Historiadores e acadêmicos de vários países contribuíram para a pesquisa para tornar mais fiel possível a corajosa e iluminada ideia de Youssef I. Esse soberano da dinastia Nasrida, vendo o avanços dos reinos cristãos sobre o Al-Andalus encarregou o vizir da côrte, Ibn Al Khatib, pensador e poeta, da missão de erguer uma obra para “que mundo não nos esqueça, nos compreenda e nos recorde”, e que deveria deixar uma marca indelével de uma civilização, “uma das maiores manifestações do nosso gênio”. Ao falarmos em arquitetura dos palácios não estamos nos referindo a algo corriqueiro, um mero empilhar de tijolos, mas de uma obra que se guiava por propósitos filosóficos e religiosos. Os jardins, por exemplo, deveriam evocar sensorial e visualmente o paraíso, a caligrafia era considerada a geometria do espírito e decorava as paredes com poemas e suras do Corão. Como dizem os construtores de Alhambra: “se tirassem as paredes dos castelos, eles se sustentariam de pé somente com as palavras”.

Para a diretora do filme, Isabel Fernández, o filme é produto de algo maior do que interesse intelectual ou curiosidade: “A arte da Andaluzia é uma das minhas fascinações. Há alguns anos escrevi um roteiro para um documentário sobre a conquista de Valência pela coroa Catalã-Aragonesa e um historiador me contou que, nessa conquista, havia muito mais muçulmanos nas populações envolvidas do que cristãos. Fiquei imaginando como isso era possível. O historiador disse-me então algo que não saiu mais da minha cabeça: quando uma civilização está em pleno desenvolvimento, ela é muito frágil comparada com uma sociedade primitiva que só tem um único interesse, a guerra e a conquista. Por isso, os cristãos, muito pouca gente, eram capazes de conquistar, rapidamente, espaços na Andaluzia. Enquanto que, de um lado os pais se ocupavam de cuidar do jardim e do que estudavam seus filhos, do outro lado eles se preocupavam em fazer armas potentes para matar e conquistar. Essa é uma ideia que podemos trazer para o presente, para o momento que estamos vivendo agora. Foi assim que me ocorreu falar sobre Alhambra, sobre o processo de construção e porque ele foi feito, a partir dessa especulação seria um gatilho perfeito pra falar deste canto de cisne do Al Andaluz”.

Além de toda a pesquisa e o acompanhamento detalhado de especialistas na recriação de cenários, figurinos e até gestuais da época, a produção de “Os Construtores de Alhambra”, se preocupou com a escolha de atores que, inquestionavelmente, dessem credibilidade à história, apesar de ela não ser fictícia. Todos os atores são, de primeira ou segunda geração, descendentes de nascidos em algum país do Norte da África e trabalham até atores de filmes mainstream, como Amr Waked, nascido no Egito e residente na Espanha ator em “Lucy”, de Luc Besson e “A Pesca do Salmão no Iêmen”, de Lasse Hallstrom. “Eu não queria que marroquinos, tunisianos e argelinos que vissem o filme dissessem, o que está fazendo essa branca espanhola aqui?, e decidi que todos deveriam ter origem árabe-muçulmana. Eles ajudaram muito, contribuindo no aspecto da expressão de sua cultura e religião, porque eu não sou muçulmana, não sei como e quando eles começam a rezar, por exemplo”.

Na 19ª Mostra Mundo Árabe de Cinema, realizada em 2004, foi exibido o documentário português “O Poeta Rei”, contando a história de Al Mu´tamid, soberano durante um período da dominação moura sobre a Península Ibérica. O diretor, Carlos Gomes, considera que a cultura árabe-islâmica que tem influência gigantesca em Portugal é ignorada na região. Questionada a respeito da relação dos espanhóis com essa herança cultural, Isabel também vê problemas de preconceito e falta de informação entre os seus conterrâneos. “O que a Espanha faz muito bem, é defender o patrimônio andaluz em relação à arte e as edificações, mas a história das pessoas que pertenciam a esse mundo não foi contada. Até um personagem de grande valor cultural como Ibn Khatib ninguém conhece. Só agora ele ficou famoso por causa do filme. Eu não conhecia, e isso não é o problema, o problema é que, na época das filmagens, haviam muitos funcionários do complexo de Alhambra que não sabiam quem era Ibn Khatib. Quando você visita os castelos e escuta os áudios de informação turística, escuta histórias curtas de Washington Irving, que é um escritor e viajante estadunidense do final do século XVIII e não da pessoa que mais tem informação sobre os castelos que é Ibn Khatib. O  tema do Al-Andaluz em toda a sua profundidade ainda não recebeu  o peso cultural devido. É importante saber como somos e como projetamos o futuro, mas não  falamos das relações com a Ásia e África, isso é totalmente ignorado por aqui. Teria que haver um esforço para romper esse arquétipo, porque na realidade, a Europa se construiu com o Islam, o Islam é também europeu, se desenvolveu em uma parte do continente e isso tem relação com a Espanha e Portugal, negar isso é um preconceito que vem do Norte Global que nos desvaloriza e nos faz cobrir uma parte da nossa identidade que é superpoderosa.”

“Os Construtores de Alhambra” é muito bem-sucedido em aguçar a curiosidade histórica sobre o Al Andaluz e as figuras de Youssef I, Mohamad V (filho e sucessor de Youssef) e principalmente Ibn Khatib, o poeta da corte, além de oferecer um espetáculo visual digno da estética dos castelos de Alhambra. A Mostra Mundo Árabe de Cinema apresenta, mais uma vez, uma produção que valoriza o legado árabe da Península Ibérica chegada ao Brasil através da colonização portuguesa e que, felizmente, vem sendo cada vez mais lembrada na América Latina. Um filme importante por sua atualidade, uma reflexão de como uma sociedade avançada em conquistas civilizatórias, baseada na racionalidade, no conhecimento científico e no amor às artes pode ser atacada por quem nega a civilização. Não é isso que estamos vendo hoje? O avanço da intolerância, da irracionalidade, os apelos às armas e a força bruta, o do negacionismo à ciência? Conhecer e estudar a história do Al Andaluz pode nos fornecer pistas para combater o obscurantismo e a violência. 

ENTRE DOIS, HÁ O CAMINHO DA TOLERÂNCIA
 
Aisha é uma mãe de família de uma pequena comunidade costeira ao norte da Tunísia, que vê seus dois filhos mais velhos abandonarem o lar para se aventurarem nas fileiras de um grupo estilo Daesh, ou Estado Islâmico. Esse é o ponto de partida de “A Quem Eu Pertenço”, dirigido pela tunisana, Meryam Jabeour. A família toda sofre com a ausência deles, o sentimento é de luto e perplexidade. O destino dos rapazes é desconhecido.  Quando um dos filhos, Mahdi, volta da Síria,  casado com uma mulher silenciosa e vestida com Niqab – mais tarde saberemos que ela foi vítima de estrupro – o drama se adensa, mais e mais, jogando os protagonistas num conflito trágico. A história alterna realismo cru, com momentos de atmosfera surreal e suspense, quase terror. Ninguém pode revelar a volta de Mahid, ninguém sabe o passado de sua misteriosa e calada esposa. Aisha e o marido não sabem como morreu seu outro filho. Tudo no filme: gestos, tons e interpretações reforçam a tensão emocional e a dramaticidade. Não há escape, ninguém toma fôlego. O final não é redentor ou explicativo, como nas narrativas tradicionais,  mas causa uma implosão interna nos personagens. Num filme absolutamente feminino, os homens exercem sua violência destruindo laços sociais, familiares, éticos, e as mulheres, como a mãe Aisha, tentam reconstruir esses laços com seu amor, sensibilidade e compreensão. 
 
Essa pulsão feminina de vida e tolerância, está também presente em “Entre Dois”, direção da tunisiana Nada Mehzi Hafaiedh, na figura da mãe viúva e da irmã que, com cumplicidade e afeto, protegem Shams, uma mulher intersexo, dos preconceitos e da repressão social numa pequena ilha na Tunísia. Apaixonada pelo pescador Habib que deseja casar com ela, Shams se sente pressionada a revelar seu segredo. Mas essa revelação acontece contrariando a sua vontade e de forma extremamente violenta.   Abeldkhalik o marido abusador de sua melhor amiga, Naima, tenta estuprá-la, descobre sua identidade intersexo e, aos berros, conta a todos na comunidade. Depois desses acontecimentos sórdidos, Habib se sente enganado e a abandona com truculência. Com a ajuda e interferência de um sábio sufi, Shams acaba deixando a ilha e vai para Tunis, abrigada na casa do filho do sábio, também adepto do sufismo. Há muitas diferenças, obviamente, nos dois filmes, mas esse ponto é fundamental: enquanto que em “A Quem Eu Pertenço” os personagens não encontram saída ou compreensão para a situação dramática, a moça intersexo de “Entre Dois” encontra proteção e tolerância através dos sufis.  Esse foi um dos temas de uma conversa com a diretora do filme Nada Hafaiedh. Em sua filmografia, Nada já abordou, como “Histórias Tunisianas”, questões sociais, patriarcado, independência feminina… temas difíceis em uma sociedade que, assim como a nossa, posições mais conservadoras entram em choque com posturas mais liberais: 
Gosto de abordar questões sociais. Esta se tornou minha “linha editorial”, a maneira que escolho para me expressar, abordar assuntos difíceis e estimular conversas abertas. Meu objetivo é desafiar o pensamento vigente e incentivar o diálogo. Acredito profundamente que o cinema é uma ferramenta poderosa para questionar, provocar a reflexão e, em última análise, mudar mentalidades. “Entre Dois” é uma história que explora a tensão entre desejo e autoidentidade. Em sua essência, é uma alegoria da condição humana: uma jornada para transcender nossos medos, abraçar o amor como força transformadora e encontrar a coragem para enfrentar o desconhecido. As mulheres que cercam Shams – sua irmã Fatma, sua mãe Fadhila e Naima, a mulher que a ama incondicionalmente, apesar de sua identidade intersexo – a veem, antes de tudo, como um ser humano, além de gênero ou orientação sexual. Para elas, o valor de Shams é definido por sua alma, sua gentileza e sua presença, não por rótulos sociais. No filme, esse círculo de mulheres representa uma verdade universal: as mulheres costumam ser mais receptivas e empáticas do que os homens quando se trata de questões de identidade. Talvez por causa de suas próprias experiências com as expectativas e limitações sociais, elas instintivamente entendem o valor de acolher os outros sem julgamento. 
 
Voltando mais para o lado social e político, como está a situação da mulher tunisiana atualmente, principalmente depois da Primavera Árabe?
        – As mulheres na Tunísia demonstraram extraordinária resiliência nos anos que se seguiram à revolução. Elas estiveram na linha de frente da mudança, nas ruas, na política, na arte e na vida cotidiana. Mas 
sejamos claros: mais de uma década depois, o cenário está longe do ideal. Sim, as mulheres tunisianas ainda desfrutam de direitos legais raros no mundo árabe: o direito ao divórcio, à transmissão de sua nacionalidade, ao acesso a métodos contraceptivos e ao aborto. No papel, essas conquistas são o orgulho da nação. Mas, na prática, permanecem frágeis e constantemente ameaçadas.
A revolução não erradicou mentalidades profundamente enraizadas. Sexismo, assédio e violência de gênero persistem tanto nos espaços públicos quanto privados. 
As mulheres aprenderam a sobreviver, se adaptar e resistir dentro de uma sociedade que não as apoia, exatamente. São empreendedoras, ativistas, mães, artistas e trabalhadoras que navegam em uma sociedade ainda dividida entre ideais modernos e resistência conservadora. Sua força reside na persistência, em reivindicar espaço mesmo quando não é dado livremente, em se manifestar mesmo quando lhes é dito para ficarem em silêncio. No meu filme, essa realidade é personificada nas mulheres ao redor de Shams. A aceitação, a empatia e a coragem moral delas refletem as revoluções silenciosas, porém profundas, que as mulheres tunisinas lideram todos os dias, nem sempre nas ruas, mas em seus lares, relacionamentos e comunidades. É um lembrete de que, embora a mudança política possa estagnar, revoluções pessoais estão acontecendo nos corações das mulheres que se recusam a deixar sua luz se apagar.  
 
Como o seu filme foi recebido na Tunísia?
Foi incrivelmente bem recebido, embora inicialmente estivéssemos bastante ansiosos com a reação. Para nossa surpresa e alegria, ele ficou em cartaz por quase 11 semanas e, no geral, o público o acolheu de verdade. Um dos momentos mais memoráveis para mim aconteceu após uma sessão, quando uma jovem pessoa intersexo, que eu nunca tinha visto antes, veio até mim e disse: “Sinto-me vista pela primeira vez”. Essa única frase resumiu tudo o que eu esperava que o filme alcançasse.
Também tive pessoas que se aproximaram de mim simplesmente para dizer: “Obrigada por nos mostrar que essa realidade existe”. Esse tipo de encontro me fez perceber o verdadeiro poder da narrativa para criar visibilidade, despertar empatia e abrir mentes.
 
A interferência de um sábio sufi na trama é fundamental para história. Gostaria que você comentasse esse aspecto.
Escolhi integrar a filosofia sufi ao filme porque o sufismo, a dimensão mística do Islã, oferece uma linguagem de abertura e transcendência que ressoa além das fronteiras culturais e religiosas, em uma sociedade onde a identidade, especialmente a de gênero, pode ser recebida com mal-entendidos ou preconceitos. Há no sufismo uma ênfase na essência espiritual em detrimento da forma física. Ao mesclar a filosofia sufi com a jornada pessoal de Shams, eu queria mostrar que a verdadeira espiritualidade vai além de dogmas rígidos; ela se trata de compaixão, autodescoberta e reconhecimento do divino em cada ser humano. O Islã, em sua essência, é uma religião de tolerância, compaixão e aceitação. O Corão nos lembra repetidamente que somente Deus tem autoridade para julgar os seres humanos: “De fato, teu Senhor julgará entre eles no Dia da Ressurreição sobre aquilo sobre o qual costumavam divergir.” (Surat An-Nahl, 16:124) Como seres humanos, nosso papel não é julgar, mas viver com bondade, empatia e humildade. Na tradição islâmica, nascer intersexo, conhecido na jurisprudência clássica como khuntha, é reconhecido há séculos. O caso de khuntha não é tratado no Islã como um pecado ou desvio, mas como uma variação natural da criação humana. O Corão nos lembra que Deus é Aquele que nos molda no ventre materno como Ele deseja: “Ele é Aquele que vos molda no ventre materno como Lhe apraz. Não há divindade exceto Ele, o Todo-Poderoso, o Onisciente.” (Surat Aal ‘Imran, 3:6) Quando se trata de homossexualidade ou lesbianismo, as interpretações diferem entre culturas e escolas de pensamento, mas é importante distinguir entre atitudes culturais rígidas e o espírito da própria fé. O Corão não convoca indivíduos a humilhar, prejudicar ou punir outros por suas vidas pessoais.
 
Isso é muito interessante porque, além de aborda um tema pouco usual para uma produção árabe, a questão da interesexualidade, a história contrapõe a reação conservadora da comunidade local à visão de um sábio muçulmano sobre identidade de gênero e orientação sexual, e aponta um caminho, que está dentro do Islã, de aceitação e  tolerância. Esse aspecto do filme pode surpreender o senso comum orientalista que normalmente espera ver intolerância e violência contra os LGBTQIPA+ em qualquer sociedade árabe-muçulmana. Colocamos esse discussão para o professor de árabe e islamismo, formado em Ciências Islâmicas, Idrissa Deme, do Centro de Estudos Pesquisa e Formação sobre o Islã e às Sociedades Muçulmanas (CEPFISM). Para Idrissa, muitas vezes o Ocidente, ou Norte Global, vê o sufismo como uma vertente fora do Islã ou “heterodoxa”  e “mística”, e por isso ela seria mais tolerante e aberto às diferenças: “Na verdade, a noção de ortodoxa e heterodoxa não existe na tradição islâmica, é uma categoria Ocidental. O sufismo, ou tasawuf, é uma ciência do kalam, que por sua vez, é a ciência das filosofias. E o sufismo é a filosofia das espiritualidades, não é uma corrente “heterodoxa”. O sábio sufi protegeu e acolheu a moça intersexo porque tinha consiência da jurisprudência muçulmana para esses casos, não por ser sufi. Ele aplicou a jurisprudência acoliyah, que é a das minorias. Vale para uma minoria dentro de um país de maioria de muçulmanos, vale para os muçulmanos dentro um país de maioria cristã ou de outra religião. A intenção dessa jurisprudência é de preservar essas populações, inclusive minorias sexuais, então as pessoas interesexo não são acusadas de nada. E qual é o princípio disso? A preservação dessas populações. Destruir essas populações é ir contra o princípio divino. Porque Deus criou a gente de diferentes processos para que nos entreconhecêssemos. Você, ser humano, só vai se conhecer porque conhece o outro. É necessário existir diferenças também na sexualidade, até a maneira de viver essa sexualidade, para saber como é também a sua própria sexualidade. Esta diferença é uma criação divina. Mas hoje, infelizmente, as pessoas não conhecem mais essa jurisprudência. Porque o conhecimento foi apagado pelo colonialismo. Não esqueçam que os europeus, que foram para os países de maioria muçulmana, queimaram milhões de textos, mataram milhares de sábios. O que está se descobrindo agora no Ocidente, e está nas sigla LGBTQIAPN+, os sábios muçulmanos já definiram e separaram tudo há séculos, ideia por ideia. Existem livros do século VII e VIII destacando isso e ratificando qual é a postura para cada uma dessas categorias”, completa Idrissa.  
“Entre Dois” é uma produção poderosa, capaz de levantar reflexões e um rico  debate sobre um assunto aparentemente tabu no mundo árabe, e contribui para desfazer os reiterados preconceitos, distorções e generalizações contra esses povos, sua cultura, filosofia e religião. Reforçando essa percepção, terminamos aqui com as palavras de Nada Hafaiedh saudando o Brasil: “Estou profundamente comovida de ver o filme ser compartilhado com o público brasileiro, um país cuja vibrante e corajosa comunidade LGBTQIAPN+ continua a inspirar o mundo. Espero que o filme repercuta não apenas entre a diáspora árabe, mas também em brasileiros de todas as esferas da vida, gerando diálogo, emoção e conexão. Ver a história ser abraçada em um lugar de tamanha abertura, criatividade e resiliência é uma honra indescritível. 
 
A Revista Diálogos Nur tem texto e edição de Gil Rodrigues
Agradecimentos: Isabel Fenandez, Nada Hafaiedh e Idrissa Deme

Entre Dois INÉDITO
Take My Breath
Tunísia | 2023 | Ficção | cor | 96min | 14 anos

Sinopse
Shams, uma mulher intersexo tunisiana, vê sua vida ameaçada ao se apaixonar. Em fuga, enfrenta uma sociedade que a rejeita e tenta silenciá-la. Um drama corajoso sobre identidade, desejo e dignidade.

Ficha técnica
Direção: Nada Mezni Hafaiedh
Roteiro: Pascal Jousse, Nada Mezni Hafaiedh
Fotografia: Mohamed Maghraoui
Montagem: Noura Nefzi
Som: Maher Abbes
Produção: Mohamed Slim Hafaiedh, Ziad H. Hamzeh
Produzido por: Leyth Production, Hamzeh Mysthique Films
Elenco: Amina Ben Ismail, Mohammed Mrad, Sana Ben Cheikh Larbi

Porta do Sol
The Gate of the Sun
Egito, Bélgica, França, Marrocos, Dinamarca | 2004 | Ficção | cor | 278min | 14 anos


Sinopse
Adaptação monumental do romance de Elias Khoury, o filme acompanha décadas de exílio, resistência e identidade palestina. Um épico político e humano que atravessa gerações e geografias.

Ficha técnica
Roteiro: Muhammad Suwaid, Yousry Nasrallah
Fotografia: Samir Bahzan
Câmera: Adel El Maghraby
Música: Tamer Karawan
Som: Humbert Balsan
Produção: Humbert Balsan
Elenco: Hiam Abbass, Rim Turkhi, Béatrice Dalle, Orwa Nyrabia, Bassem Samra, Maher
Essam

Tudo o que resta de você INÉDITO
All That’s Left of You
Alemanha | Chipre|Palestina |Jordânia |Grécia|Catar| Arábia Saudita | 2025 | Ficção | cor | 145min | 14anos

Sinopse
Depois que um adolescente palestino confronta soldados israelenses em um protesto na Cisjordânia, sua mãe relata a série de eventos que o levaram àquele momento fatídico, começando com o deslocamento forçado de seu avô.

Equipe Técnica:
Direção: Cherien Dabis
Produção: Thanassis Karathanos, Cherien Dabis, Martin Hampel, Karim Amer
Roteiro: Cherien Dabis
Editor: Tina Baz
Diretor de Fotografia: Christopher Aoun
Elenco: Saleh Bakri, Cherien Dabis, Adam Bakri

Sudão, lembre-se de nós INÉDITO
Sudan, Remember Us
Sudão | 2024 | Documentário | cor | 74min | 12 anos

Sinopse
Filmado pouco antes da guerra civil e do colapso institucional, este documentário-poema registra a juventude sudanesa entre a revolução e o exílio. Uma carta urgente a um país que desaparece.

Ficha Técnica
Direção: Hind Meddeb
Roteiro: Hind Meddeb
Fotografia: Hind Meddeb
Montagem: Gladys Joujou
Som: Damien Tronchot, Hind Meddeb
Produção: Abel Nahmias, Michel Zana, Alice Ormières, Taoufik Guiga
Produzido por: Echo Films, Blue Train Films, My Way Productions Tounès
Elenco: Shajane Suliman, Ahmed Muzamil, Maha Elfaki, Khatab Ahmed

Os Construtores de Alhambra INÉDITO
Los Constructores de la Alhambra
Espanha, Catar | 2023 | Documentário | cor | 112min | 14 anos

Sinopse
Entre a poesia e a arquitetura, o filme reconstrói a relação entre o sultão Yūsuf I e o poeta Ibn al-Khatib na criação da Alhambra. Um mergulho visual e histórico no esplendor do Andalus.

Ficha técnica
Título original: Los Constructores de la Alhambra
Direção: Isabel Fernández
Roteiro: Isabel Fernández e Margarita Melgar Kououch
Fotografia: Tote Trenas (AEC)
Montagem: Elodie Lethoud (AMMAC)
Música: Kurt Adametz
Som: Pepe Aguirre
Desenho de som: Fernando Novillo
Produção: Isabel Fernández, Carles Brugueras, Julián Hidalgo
Elenco: Amr Waked, Abdelhamid Krim, Farah Hamed, Sofian El Benaissati, Adil